quarta-feira, 21 de outubro de 2009

EM BUSCA DO DIREITO A TER DIREITOS


Todas as vezes que nos colocamos diante da Declaração Universal dos Direitos Humanos , indagamos a sexagenária Declaração sobre o diagnóstico a ser feito no que pertine a universalização, interdependência, justicialidade inter alia princípios adotados na seminal Declaração e posteriormente configurados em grau não mais de proclamação mas com horizonte de materialidade pela Declaração e Programa Ação de Viena. No quadro principiológico e normativo que decorreu da Declaração, Pergunta-se : qual o lugar que ocupa o afro-brasileiro em nossa sociedade? Indagação que encontramos resposta quando verificamos os indicadores sociais que revelam as mazelas da história de um país marcado por tão longo período de escravidão. Os brasileiros afro-descendentes constituem a segunda maior nação negra do mundo, superada apenas em população pela Nigéria.

Em 1999, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), entre os cerca de 160 milhões de brasileiros, 54% se declaravam brancos, 39,9% pardos, 5,4% pretos, 0,46% amarelos e 0,16% índios. Os negros(pretos e pardos) em 1999 representam 45% da população brasileira, mas correspondem a 64% da população pobre e 69% da população indigente. Os brancos, por sua vez, são 54% da população total, mas somente 36% dos pobres e 31% dos indigentes. Levando em conta que dos 53 milhões de brasileiros pobres, 19 milhões são brancos, 30,1 milhões pardos e 3,6 milhões , pretos. Na linha da indigência, dos 22 milhões temos 6,8 milhões brancos, 13,6 milhões pardos e 1,5 milhão, pretos. A diferença entre os parâmetros da indigência e da pobreza, é que na primeira o custo de uma cesta alimentar atende às necessidades de consumo calórico mínimo de um indivíduo, enquanto a segunda inclui além dos gastos com a alimentação, um mínimo de gastos individuais com vestuário, habitação e transportes.
A gravidade do problema reside na estabilidade da linha de indigência e de pobreza dos afro-brasileiros ao longo da história, mais acentuadamente durante a última década. Durante todo esse período os afro-brasileiros tem representado 63% de toda a população pobre do país.

Segundo uma pesquisa realizada pelo IPEA ( Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) "Desigualdade Racial no Brasil: Evolução das Condições de vida na década de 90", Ricardo Henriques , traz algumas desalentadoras constatações sobre a qualidade de vida dos afro-brasileiros. Uma delas é que a "pobreza concentra-se fortemente na infância e juventude mas, de forma ainda mais categórica, entre os negros dessas faixas de idade." Outro dado importante é que 60% dos idosos são brancos e cerca de 38% são negros. Havendo assim uma "intensidade relativa da sobre-representação da pobreza e da indigência entre a comunidade negra em todas as faixas de idade". Segundo ele, o Brasil, "tanto em termos absolutos como em relação aos diversos países do mundo, não pode ser considerado um país pobre, mas, sem dúvida alguma, deve ser considerado um país extremamente injusto". Ainda destaca o texto que de cada dez pessoas , no segmento mais pobre da distribuição de renda, oito são negros, e, os negros representam 70% dos 10% mais pobres da população. Por outro lado entre o décimo mais rico da renda nacional, somente 15% da população é negra, o que traduz um nítido "embranquecimento" da riqueza e do bem-estar do país.

Na composição racial da riqueza os brancos representam 85% da população do décimo mais rico de nossa sociedade e apropriam-se de 87% da renda desse décimo, ou seja, a população branca se apropria de 41% da renda total do Brasil. Segundo o aludido relatório em toda a década de 90 os negros se apropriam de mais de 50% da renda atribuída à metade mais pobre da população e de menos de 15% da renda apoderada pelos 10% mais ricos da sociedade.
No campo da educação, a escolaridade média de um jovem negro com 25 anos de idade está em torno de 6,1 anos de estudo enquanto que um jovem branco da mesma idade tem cerca de 8,4 anos de estudo, visto de um outro ângulo, um jovem branco de mesma idade (25 anos), tem em média , mais 2,3 anos de estudo que um jovem negro. O quadro da iniquidade se apresenta em relação ao analfabetismo entre negros e brancos , em 1999, com os seguintes percentuais: 8% dos jovens negros entre 15 e 25 anos são analfabetos, mas 3% entre os brancos; 5% dos jovens negros de 7 a 13 anos não freqüentam a escola e somente 2% dos jovens brancos dessa faixa de idade não o fazem. Dentre os jovens brancos de 18 a 23 anos, 63% não completaram o ensino secundário ,enquanto que 84% de jovens negros da mesma idade não completaram o mesmo ciclo escolar. No ensino superior, em 1999, 89% dos jovens brancos entre 18 e 25 anos não haviam ingressado na universidade. Os jovens negros nessa faixa etária, por sua vez, praticamente não dispõem do direito de acesso ao ensino superior, na medida em que 98% deles não ingressaram na universidade.

Tanto no analfabetismo quanto no acesso ao ensino superior repete-se a mesma situação de desigualdade racial. A taxa de analfabetismo entre os brancos com mais de 15 anos, em 1999, é de 8,3%, enquanto para os negros é de 19,8%. Quanto ao denominado analfabetismo funcional, os adultos com menos de quatro anos de estudo 26,4% dos brancos se enquadram nessa categoria, contra 46,9% dos negros. Enfim, quase a metade da população negra com mais de 25 anos pode ser considerada analfabeta funcional.

Outro dado importante da pesquisa é que em 1999, não completaram o ensino fundamental 57,4% dos adultos brancos e 75,3% dos adultos negros. Completaram o ensino médio 12,9% dos brancos e 3,3% dos negros.
Segundo os dados da pesquisa é fácil verificar o fosso das desigualdades raciais no campo de educação.
A população economicamente ativa dos brancos, na ordem de 43,1 milhões, é sensivelmente superior à dos negros que está na faixa de 35,7milhões. Tais indicadores podem nos explicar as altas taxas de desemprego. Em 1999, 10,6% dos negros economicamente ativos compunham a massa de desempregados, contra 8,9% entre os brancos.

Quando se trata de informalidade no campo do trabalho e no grau de assalariamento, homens e mulheres brasileiros afro-descendentes, ocupam posições de grande desvantagem do que da população branca.

Outros trabalhos, como os do professor Marcelo Paixão, que investigou o Índice de Desenvolvimento Humano(IDH) da população negra do Brasil, com enfoque comparativo com os países africanos o do Instituto Sindical Interamericano pela Igualdade Racial – INSPIR, publicado em outubro de 1999, intitulado Mapa da População Negra no Mercado de Trabalho e o relatório da Inter-American Commission on Rights sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, todos diagnósticam as raízes das desigualdades no Brasil como de natureza racial.
A importância da análise desses materiais é que a discussão sobre os direitos humanos perpassa por todas as áreas do conhecimento. A quantificação das desigualdades raciais, importa em nos oferecer um quadro ineludível das condições e das oportunidades dos afro-brasileiros.

As demais Declarações de Direitos que antecederam a Declaração Universal dos Direitos Humanos, foram elaboradas num contexto, cujo o pleito se limitava a igualdade meramente formal. Era a dimensão da pessoa humana no plano da abstração sem as preocupações da afirmação concreta do princípio da igualdade. A igualdade perante a lei , embora tenha sido o estandarte, a bandeira de todas as Declarações, não é suficiente para dignificar aqueles que estão em desvantagem histórica. Os afro-brasileiros têm manifestado ao longo de toda a sua história um honroso papel de resistência a opressão colonialista , escravagista e outras formas de opressão .
A Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 promove um extraordinário avanço quando amplia a concepção de cidadania incluindo nela não só ou direitos civis e políticos mas também os direitos econômicos, sociais e culturais.
Tal concepção de direitos humanos foi endossada pela Declaração de Viena de 1993, quando trata da indivisibilidade, interdependência e universalidade dos direitos humanos.
As Declarações posteriores a Declaração de Viena, todas evidenciam a questão da cidadania no seu sentido pleno, reflexo e cotidiano. Tais Declarações adotam um plano de ação, que significa o comprometimento dos Estados quanto a promoção da igualdade e o combate a discriminação.
A promoção da igualdade e o combate a discriminação são estratégias, no campo das políticas públicas, que somente podem ser realizadas em Estados Democráticos de Direito, onde não estão garroteadas as vias institucionais de comunicação entre a sociedade civil e poder público.
Os resultados da Conferência Mundial de Direitos Humanos realizada no corrente ano em Durban na África do Sul, sobre Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e outras Formas de Intolerância irão comprometer o poder público nas esferas municipal, estadual e federal no que diz respeito a implementação de políticas públicas de promoção da igualdade enquanto estratégias de superação das desigualdades.
Hoje, tais Conferências resultam em Declarações que articuladas com os planos de ação, comprometem os Estados-Partes a adotarem planos nacionais de promoção da igualdade e instrumentos repressivos as práticas de intolerância.
Se no passado a luta pela igualdade, era a busca do reconhecimento da cidadania - do direito a ter direitos - hoje , não menos importante , é a luta contra a desigualdade. A luta contra a desigualdade é a luta pela inclusão, a luta contra a exclusão que entre nós é de natureza racial. O extrato social pobre e indigente é afro-brasileiro. O destinatário dos direitos humanos, são pessoas concretas . São seres humanos constituídos de direitos, possuem um simbolismo, mas não são meramente simbólicos, como se fossem seres humanos "encadernados" numa obra ficcional de idéias , princípios e valores universalizados. Nesse sentido, as políticas públicas de ação afirmativa surgem como uma das medidas de efetivação da igualdade material.

O discurso jurídico, as vezes, pode apenas constatar a situação de desvantagem em relação a sociedade civil brasileira como um todo, sem contudo apresentar, como pode apresentar , mecanismos de promoção à igualdade e punição as práticas discriminatórias. Remediar a desvantagem pode representar mais uma armadilha da "naturalização" da hierarquia racial que inferioriza o afro-brasileiro , ou incentivar a mitologia da democracia racial ,ambas mantenedoras de um discurso e práticas aviltantes à dignidade da pessoa humana.

A cultura dos direitos humanos, ainda insipiente em nosso país, merece ser implementada tanto na educação, quanto no trabalho visando efetivar o acesso igualitário aos direitos civis, políticos, econômicos,
Sociais e culturais de acordo com os termos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, tratados, pactos e convenções internacionais que versam sobre esses direitos.

A Constituição brasileira de 10 de outubro de 1988, com vigência de 21 anos, maturidade constitucional democrática até então nunca dantes alcançada ,linhada com os valores multiculturais e pluriétnicos tonifica os direitos humanos em nossa cultura , ressaltando a sua universalidade iterativa - outrora essencialista de significado trancendental - mas enfatizando seu aspecto orientador , dirigente de justiça social. Nele o objetivo está situado histórica, contextual e contingente, produto de lutas que apontam no sentido de práticas institucionais e sociais.

As conquistas realizadas no mundo, em prol do respeito à dignidade da pessoa humana, reverberam o desiderato de justiça social na comunidade afro-brasileira, que a exemplo de outros povos afro-descendentes instituíram um modelo de sociedade não excludente, não segregacionista.

O texto constitucional em diversos dispositivos trata o afro-brasileiro , em razão da sua contingência histórica, étnica e cultural , não apenas como o outro generalizado, mas como o outro concreto, tendo sido pela primeira vez na história do constitucionalismo brasileiro reconhecida a sua diferença.
Nas relações internacionais o Brasil tem por princípio o repúdio ao racismo e na ordem jurídica interna figura como crime imprescritível e inafiançável.

Necessária e imprescindível é a educação para a cultura dos direitos humanos, incluindo nas grades curriculares dos cursos, em quaisquer níveis de instrução, disciplina que aborde a temática dos direitos humanos, inclusive oferecendo um tratamento específico a questão das relações raciais no Brasil.

Nesse sentido, que a relação entre o outro concreto e o outro generalizado, desponta como uma nova vertente do universalismo denominado universalismo interativo no lugar do universalismo substitucionalista , o qual descarta o outro concreto enquanto estratégia de despersonalização, o desenraizamento do outro imperializado.

Essas questões, que dizem respeito ao re(conhecimento) do outro – afro-brasileiro – são importantes nas discussões cotidianas, uma vez que elas representam a conquista, a recuperação de uma identidade comunitária submetida sistematicamente a critérios que se apropriam das formas de fazer, pensar e sentir, com o timbre da onisciência ideo-racista.

Valores e princípios como dignidade da pessoa humana, igualdade, respeito à diversidade étnico-cultural e tolerância possuem uma dimensão humana que no trato das questões raciais peneiram todo o mais que não possui igual densidade .

Paulo Freire dizia :" quando pisei pela primeira vez terras de África, a sensação que me tomou foi a de que voltava e não a de que chegava. Talvez se possa dizer que, carregando em mim, como brasileiro do nordeste ,a africanidade que carrego, seria natural que, chegando à Africa , me sentisse voltando a ela", e com ele finalizo com a intenção de " cultivar em nós a virtude da tolerância, que nos ensina a viver com o diferente, a com ele aprender, a ele ensinar, para que afinal possamos lutar contra o antagônico".

2 comentários:

Romel Abrahim Jr. disse...

As palavras ... que força tem as palavras. Inocentes e inofensivas não são. o contrario. Instrumento de poder isso sim. Palavra dita no momento certo, rompe barreiras.

Esse texto de autoria do Mestre Sérgio Abreu, me fez olhar pra trás e mirar na frente. E juntar numa só coisa o antes , o agora e o depois. Mas sem essas palavraas seria impossivel.

VaMOS FAZER A BARULHO,Pois falar é criar um mundo que não é mais fica sendo.

palavras como estas vai fazendo um mundo verdadeiro!!

parabens!

Romel Abrahim Fernandes jr.

Tolerância disse...

Prezado Romel,
Hannah Arendt na sua obra "A condição humana", leitura obrigatória para aqueles que pensam acerca dos direitos humanos. Celso Lafer, diria eu uma das maiores autoridades acadêmicas sobre a pensadora trabalha a idéia de reconstrução dos direitos a partir da sua produção filosófica.
A ídéia de direitos a ter direitos é o fundamento da cidadania.
Martin Luther King no célebre e mais famoso discurso que reuniu mais de 1 milhão de pessoas em 28 de agosto de 1963 em Washington, EUA, no Lincoln Memorial, dizia sobre a necessidade de ter um sonho:" I have a dream".
Romel, entre uma filósofa judia e um lider negro, norte americano,que mereceu o Prêmio Nobel da Paz por sua luta existe um ponto de convergência que supera todas as diferenças de raça e credo: A Paz se conquista respeitando-se a dignidade da pessoa humana.
Vamos debater, vamos difundir o pensamento, a reflexão a crítica.
Agradeço as suas respeitosas palavras.